O Blog Farmácia Biotecnológica é um espaço de divulgação de informações sobre aspectos tecnológicos da indústria farmacêutica de biotecnologia, e como uma indústria de produtos que vão interferir positivamente na saúde de indivíduos, há de se ter em mente que é um local que respira qualidade.
Para muitos que escutam pela primeira vez na área farmacêutica, qualidade se refere praticamente a Controle, ou seja, o laboratório é visto como referência de algo que irá testar o produto fabricado comparando com as especificações, aprovar caso estas sejam cumpridas, e reprovar caso contrário. Dessa forma, o produto que sairia para o consumidor estaria livre de quaisquer características indesejáveis. Se tratando de medicamentos, os mesmos cumpririam com sua função de prevenir, curar, aliviar ou diagnosticar determinada condição, como a Lei 5991/73 define o produto tecnicamente obtido, uma vez que o controle de qualidade impediu que um produto fora de sua especificação de qualidade fosse para não um cliente, mas um paciente que está doente, sofrendo e que vê no medicamento um ítem de necessidade urgente para a resolução de sua condição.
Isso é importante, mas testar o produto só no final é racional? O que acontece com os produtos que foram rejeitados? O que esses produtos que depois de terem sido processados, e não se acharam em condições de serem vendidos à distribuidoras ou drogarias significam? Eles contêm o trabalho de pessoas? Eles contém o investimento da instalação de fabricação? Eles contém matéria prima? Foi consumida energia elétrica? houve "desgaste" do equipamento? Se a resposta for SIM, como na verdade é, é necessário repensar a função de uma área de controle de qualidade.
Pensar de maneira prospectiva na produção de medicamentos evitando essa postura de testes no produto final somente significa adotar o princípio das Boas Práticas de Fabricação. Atualmente, no Brasil, as BPF são determinadas pela RDC 17/2010, que substituiu a RDC 210/2003. Apesar de a RDC 17/2010 ser a mais atual, eu considero mais interessante uma organização sequencial colocada na RDC 210/2003.
Segundo essa organização, considera-se três conceitos interrelacionados: Garantia da Qualidade, Boas Práticas de Fabricação e Controle de Qualidade.
Antes de irmos a eles, uma questão que é imprescindível quando se trata de qualidade é o apoio das pessoas que estão no nível estratégico de uma empresa. Presidentes, Diretores, Gerentes, os boards das empresas, precisam entender a ideia da qualidade do medicamento enquanto uma questão de promoção à saúde, e estratégica para não somente cumprir com as especificações, mas como redução de refugos e de custos, que é na verdade uma consequência. Uma vez compreendida essa realidade, eles darão todo o apoio para que a filosofia da qualidade seja abrangentemente absorvida por todos e tornando-se uma cultura na empresa. O oposto também é verdadeiro. Caso as pessoas do nível estratégico não absorvam a filosofia da gestão da qualidade será impossível manter as BPF e consequentemente produzir medicamentos de qualidade.
Os princípios: Garantia da Qualidade, Boas Práticas de Fabricação e Controle de de Qualidade
A Garantia da Qualidade é a totalidade das providências tomadas com o objetivo de garantir que os medicamentos estejam dentro dos padrões de qualidade exigidos para que possam ser utilizados para os fins propostos. Ela incorpora as BPF e outros fatores como o Projeto e Desenvolvimento de um produto. A Garantia da Qualidade é abrangente, e além das BPF, considera as BPL (Boas Práticas de Laboratório) e BPC (Boas Práticas Clínicas). Lida especialmente com auditorias, controle de mudanças, revisão de lotes fabricados antes da liberação dos produtos para venda e a avaliação da consistência do sistema da qualidade através de documentações e registros.
As Boas Práticas de Fabricação é a parte da Garantia da Qualidade que assegura que os produtos sejam consistentemente produzidos e controlados com padrões de qualidade apropriados para o uso pretendido e requerido pelo registro. Seu cumprimento está orientado para a diminuição dos riscos de uma produção farmacêutica. Esses riscos não podem ser detectados somente pela realização de ensaios nos produtos acabados. Os riscos são essencialmente: Contaminação cruzada, troca ou mistura. Partículas em suspensão, de um pó, podem contaminar um outro produto caso não exista um sistema de exaustão eficiente, por exemplo. Produtos rotulados próximos uns dos outros podem ser identificados de maneira equívoca. Produtos identificados de modo certo, podem ser embalado junto com outros diferentes, caso estejam na mesma área. Essas circunstâncias podem não ser identificados no controle de qualidade.
Por fim, Controle de Qualidade e a parte das Boas Práticas de Fabricação responsável pela amostragem, especificações de matérias primas, produtos acabados, material de embalagem e ensaios, de forma a assegurar que o produto só é liberado depois de ser avaliado segundo as especificações. É iminentemente laboratorial, mas é envolvido em questões relacionadas à qualidade do produto. É independente da produção e tem toda uma estrutura que permite cumprir com sua função. Às vezes é também responsável pelo controle ambiental.
Uma vez compreendidos esses conceitos, podemos tecer o seguinte raciocínio:A Garantia da Qualidade contém as BPF, que contém o Controle de Qualidade.
Dessa forma, retomamos o título da postagem: Como a qualidade pode ser fabricada? Como a própria BPF fala, aspectos de Projeto e Desenvolvimento do produto são parte constitutiva da Garantia da Qualidade. Um produto antes de ser fabricado passou pelo desenvolvimento, onde as características foram definidas, avaliadas e aprovadas, fornecendo assim a especificação do mesmo. O processo de fabricação deve fornecer um produto dentro da especificação aprovada e nada mais que isso. Mas existiriam situações que fizesse o processo perder sua robustez ? Quais poderiam ser fontes de não conformidade? As matérias primas? Os equipamentos? Os operadores? As instalações? Os sistemas computadorizados? As embalagens? Documentos? Os métodos de análise? O armazenamento? O transporte?
A resposta é: Sim. Todas elas e mais algumas, podem ser fontes de variação. Mais crítico, podem ser fontes de não-conformidades, o que pode alterar de maneira extensa a qualidade do produto, podendo resultar ou em ineficácia do medicamento, ou mesmo intoxicações pelo medicamento. Logo, a fabricação da qualidade se reveste de um aspecto crítico, que será crucial para que o medicamento seja eficaz, e deve considerar toda e qualquer operação ou aspecto que pode ser fonte de não conformidade.
Assim, percebe-se que a qualidade é algo que começa antes de uma fabricação comercial, ou seja, começa no desenvolvimento e perpassa todos os aspectos da fabricação farmacêutica. Observar e controlar estes aspectos e acima de tudo, ter evidências documentadas de sua consistência são a chave para a construção da qualidade.